sexta-feira, 20 de novembro de 2009

SOCIEDADE E CRISE


Reflectindo sobre os bloqueios ao desenvolvimento da sociedade portuguesa nos séculos XVI - XVIII, Vitorino Magalhães Godinho elege como causas a intumescência das classes não produtoras, nobreza e clero, que, além de vários privilégios e imunidades, detêm percentagens muitíssimo elevadas dos bens de raiz e arrecadam um quinhão bastante importante da «renda» nacional, e, por outro lado, uma extrema contracção da população ocupada na produção das subsistências de base. Continuando a apoiar-nos no mesmo autor, com a viragem dos Descobrimentos a situação não se altera, e, poucos anos após a chegada à Índia, a nobreza tradicional, aliada ao clero, consegue recuperar o poder económico à burguesia emergente, cujas consequências são a crise de meados de quinhentos. O mesmo acontece depois com Brasil. No derradeiro quartel do século XVII, com o conde da Ericeira, e em meados do século XVIII, com o Marquês de Pombal, as políticas manufactureiras e as tentativas de industrialização dão resultados muito limitados, conduzindo o país à grave situação económica do final do absolutismo. Durante aquele longo período, apoiando-nos agora em António Sérgio, a prioridade económica recaiu predominantemente na «política do Transporte» sobre a «política da Fixação», na «política da circulação» sobre a «política da produção», na «política do mau capelo» sobre a «política da boa capa».

O Liberalismo não altera significativamente a situação. Instaura-se a oligarquia fundiária da nobreza liberal e da nova aristocracia burguesa, pelo que esta se torna mais agrária do que industrial ou comercial, e ambas prosperam com a especulação em torno da venda dos bens monacais. Mantém-se o regime de privilégios e benefícios, agora com os novos barões e viscondes, e instala-se o caciquismo político, tudo à custa do erário público. Privados de recursos, os sucessivos governos acabam por depender da banca, sobretudo da estrangeira, enredando-se em arranjos com a também nova oligarquia financeira, que enriquece com a especulação financeira e a agiotagem da dívida pública e dos melhoramentos materiais, absorvendo as receitas do Estado. Os resultados são a falha da revolução industrial, somando-se à falha anterior da revolução agrícola, e a crise geral do final do século.

O movimento republicano bate-se por resgatar o país do declínio secular, através da reforma política, do desenvolvimento dos recursos nacionais e da elevação do povo à cidadania. Porém, a crise internacional que explode na I Guerra Mundial, a crise económica que lhe sobrevém e o 28 de Maio conduzem, uma vez mais, ao insucesso desta nova tentativa para fazer entrar Portugal na modernidade. Com o Estado Novo é a recuperação da estrutura mais retrógrada da sociedade e do poder das oligarquias dos velhos interesses e privilégios, a asfixia dos poucos grupos industriais e comerciais formados na República e o regresso do mundo rural.

Este bosquejo da nossa História permite detectar alguns dos principais bloqueios ao desenvolvimento nacional. Habituámo-nos a viver do que vem de fora, e a desbaratar os proventos com as prestações a grupos sociais não produtores (nobreza, clero, clientelas políticas, etc.) e nos avultados pagamentos dos juros da dívida pública. O domínio das estruturas sociais rentistas e usurárias e as contribuições impostas aos restantes sectores da sociedade travaram o investimento na melhoria da produção nacional e na qualificação dos recursos humanos, enquanto os poderes políticos se enredaram sistematicamente em compromissos com as oligarquias dominantes, arredando os cidadãos da participação na vida pública.

“Esgotado o ciclo do «Império», a Revolução de Abril nasceu acompanhada da vontade de inventar um outro destino para Portugal” - na feliz síntese de Eduardo Lourenço. Mas, passados trinta e cinco anos, voltam em força os males do passado. Muitos viram, e vêem, na União Europeia sobretudo uma fonte de dinheiro fácil. Parte significativa dos subsídios é desperdiçada no enriquecimento ostentatório, em negócios fraudulentos e em projectos de duvidosa prioridade. A banca e a bolsa tornam a dominar o sistema económico, e multiplicam-se os negócios especulativos, sob a protecção do Estado, em torno das mais-valias do solo e das grandes obras públicas. Aumentam as despesas correntes da Administração, e os poderes autárquicos transformam-se em agências de emprego e de um novo clientelismo, a par do conluio com promotores e construtores. Vive-se para o curto prazo, só interessa o lucro imediato, imperam a ambição e a ganância sem olhar a meios, com a cobertura do poder a privilégios e rendimentos escandalosos, enquanto se agravam as desigualdades sociais, o desemprego e a pobreza, e regressam a fome e a emigração. Acentua-se a tendência para a hegemonia pelos partidos do espaço público, generaliza-se a suspeição sobre os titulares do poder, alarga-se o divórcio dos cidadãos com a política e reinstala-se a crise política, económica e moral. Com a debilidade empresarial, um baixo produto interno e a fuga aos impostos as receitas do Estado pouco crescem, pelo que a sobrecarga fiscal da classe média e o endividamento público são as soluções de recurso. A crise económica que o país vive só surpreende os menos informados. Mas, mais do que conjuntural e económica, a crise é estrutural e da própria sociedade. O passado torna-se presente e ameaça o futuro! No centenário da República, impõe-se retomar a ética, a cultura e os autênticos desígnios republicanos, para que Portugal e a democracia sobrevivam.~

MONTEIRO VALENTE - Associado da ALTERNATIVA

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