terça-feira, 28 de outubro de 2008

ESCRITA E FILOSOFIA

A primeira obrigação do escritor é ser filósofo; é escrever filosoficamente; é ver dois palmos adiante do nariz; olhar para o futuro e não se contentar com o presente; levar a candeia adiante, que a candeia que vai adiante é que alumia, e em vez de estudar e defender o que é, buscar e ensinar o que há-de ser. Assim, pois, a filosofia nunca é demais; o que pode, é ser de menos, e quem não escreve filosoficamente , não escreve – escrevinha!

 JOÃO DE DEUS (1830-1896) , Correspondência

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

EFEITOS DO AMOR

Nascemos para amar; a humanidade

Vai tarde ou cedo aos laços da ternura:

Tu és doce atractivo, ó formosura,

Que encanta, que seduz, que persuade:

 

Enleia-se por gosto a liberdade;

E depois que a paixão n’alma se apura,

Alguns então lhe chamam desventura,

Chamam-lhe alguns então felicidade:

 

Qual se abisma nas lôbregas tristezas,

Qual em suaves júbilos discorre,

Com esperanças mil na ideia acesas:

 

Amor ou desfalece, ou pára, ou corre;

E, segundo as diversas naturezas,

Um porfia, este esquece, aquele morre.

 

MANUEL BARBOSA DU BOCAGE (1765-1805)

domingo, 19 de outubro de 2008

POR UM ENSINO PATRIÓTICO

[…] Estuda-se, entre nós, como se não houvesse uma Pátria: como se cada objecto do nosso estudo não fosse um ser integrante dessa Pátria: quando nada da nossa terra nos devia ser indiferente: quando nem uma pedra dela é uma pedra qualquer; mas tem um cunho nacional, local, familiar: é a pedra doméstica do nosso lar; é a pedra do baptistério, do moinho e da fonte da nossa povoação natal, e é a pedra lascada que recorda as nossas origens ou a pedra dos monumentos, emblema da nossa glória, que celebra os feitos dos nossos antepassados. Cada objecto tem uma história, que o educando precisa de conhecer e de amar. Uma história e um destino! Será impossível ir arrancar assim a instrução aos flancos palpitantes da Pátria? […]

 BERNARDINO MACHADO, A socialização do Ensino (1897)

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

SOBRE A ALEGRIA

Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la. É isto o que mais importa – essa alegria.

 Jorge de Sena (1919-1978), “Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya”

 

E só me resta hoje uma alegria:

É que, de tão iguais e tão vazios,

Os instantes me esvoam dia a dia

Cada vez mais velozes,

mais esguios …

 Mário de Sá-Carneiro (1890-1916), “Além-Tédio”

 

Perigosos são os grandes homens dos quais não podemos rir.

 Giovanni Guareschi (1908-1968), “Correspondência”

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

ACENDALHAS

Era como fechar o dia com as acendalhas, junto ao coração quase deserto. As mais simples palavras entravam em desgoverno, a sombra das tuas mãos cobria quase metade da terra. A meio da sala alguns pratos, incenso, a luz azul do computador, o sentimento ainda selado por atilhos, cordames, a música repetia-se cadenciada no cenário desastrado. E o sol, que desaparecera, e vénus, que brilhava, ardiam um no outro como troféus do coração.

 FERNANDO LUÍS SAMPAIO, Falsa Partida (1960)

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

GOSTAM ELES DE POESIA ?

No fundo, as pessoas que gostam de poesia gostam, na melhor das hipóteses, de alguns versos, que repetem a torto, direito e despropósito. São como o autodidacta do poema epónimo de Alexandre O’Neill  

(o qual“já ia na terceira

fasciculada história da pintura”)

que

“Se acaso em piquenique desdobrava

toalha em relva,

logo o Déjeuner

sur l’herbe lhe acudia à retentiva”.

 

MIGUEL TÁMEN , Artigos Portugueses (1960)

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

IDEAL

Aquela, que eu adoro, não é feita

De lírios nem de rosas purpurinas,

Não tem as formas lânguidas, divinas

Da antiga Vénus de cintura estreita…

 

Não é a Circe, cuja mão suspeita

Compõe filtros mortais entre ruínas,

Nem a Amazona, que se agarra às crinas

Dum corcel e combate satisfeita…

 

A mim mesmo pergunto, e não atino

Com o nome que dê a essa visão,

Que ora amostra ora esconde o meu destino…

 

É como uma miragem, que entrevejo,

Ideal, que nasceu da solidão,

Nuvem, sonho impalpável do Desejo…


Antero de Quental